domingo, 29 de janeiro de 2012

Crônicas de 88 VII

Invasão aos ônibus das mulheres

Durante os dias em que se desenrolou a greve, tornou-se normal o deslocamento de grupos enormes de trabalhadores pelas ruas do Centro da cidade de Valença. É que as fábricas do Grupo Santa Rosa, embora localizadas em regiões próximas ao Centro, ficavam em bairros diferentes: a Fábrica I no Bairro Benfica, a Fábrica II no início do Bairro Laranjeiras e a Fábrica III numa extremidade do Centro (próxima à Rodoviária). Assim, relativamente próximas umas das outras, era possível manter a concentração de trabalhadores na Fábrica III e um pouco antes dos horários de troca de turno, eles deslocavam-se para as outras unidades fabris a fim de garantirem a continuidade da paralisação com a formação de piquetes. Além disso, o deslocamento de trabalhadores pela cidade servia para a divulgação do que estava ocorrendo. Eram momentos particularmente ricos, pois assim os operários mostravam-se como os verdadeiros donos das fábricas, já que eles determinavam o funcionamento ou não das empresas. E contagiavam quem os assistiam naquele corre-corre tresloucado pelas ruas da cidade.
Mas um destes deslocamentos foi particularmente proveitoso para a Categoria em greve, principalmente para as mulheres: encontramo-nos, na Av Nilo Peçanha, com os ônibus que traziam participantes para o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, que se realizaria no Hotel dos Engenheiros, nos dias 2, 3 e 4 de dezembro de 1988.


O Encontro, embora tendo como foco questões de caráter feminista e raciais, reunia figuras ilustres do universo político nacional. Várias dirigentes das lutas dos Trabalhadores nas últimas décadas ali estariam presentes (por exemplo, Hildézia Medeiros, Mãe Beata de Iemanjá, Benedita da Silva, Sueli Carneiro, etc) o que, por certo, faria daquele momento um marco. Tendo tudo isto em mente, ao deparar-me com aqueles ônibus diferentes no centro da cidade, não me fiz de rogado: sinalizei para o motorista do primeiro ônibus que, para minha sorte, abriu a porta. Ao entrar, deparei-me com muitas companheiras que identificavam-se com as correntes políticas junto às quais militava na época.
Sentindo-me à vontade dado o ambiente encontrado no interior do ônibus, vendi o nosso peixe. Falei da Greve dos Trabalhadores Têxteis enfatizando a maioria feminina na Categoria. Chamei atenção para fatos já denunciados até então nos nossos atos públicos e reivindiquei o apoio daquele grupo. A resposta não poderia ser melhor: fomos convidados a comparecer, à noite, ao local do Encontro, para uma conversa com Hildézia Medeiros e outras coordenadoras para, lá, alinhavarmos uma ação conjunta. Ao sair dali tinha em mente uma só questão: com quem eu poderia articular a ponte para aquele grupo, já que o Encontro era exclusivamente feminino. Não precisei pensar muito: de volta à Fábrica III para a continuidade das tarefas da Greve veio-me à cabeça o nome salvador: Leiláh Modesto Leal(foto a seguir). A Companheira, apoio de primeira hora daquela Greve, diga-se de passagem, mais uma vez não titubeou. Topou subir comigo ao Hotel dos Engenheiros para conversar com a mulherada.


Nosso encontro foi bastante frutífero. Encontramo-nos, eu e Leiláh, com Hildézia e outras Companheiras coordenadoras do Encontro. E mais uma vez Leiláh se revelava a pessoa certa para estar ali: ela e Hildézia eram velhas conhecidas de muitas lutas anteriores. Expusemos toda a situação e, ao final, garantimos a participação de três Companheiras da Santa Rosa como convidadas em um dia do Encontro. Estendemos o convite à três das principais líderes da Greve: Baiana, Rosária e Ieda. As três, naquele momento, ganhavam mais uma tarefa e tanto: serem as porta-vozes da Categoria em luta, fazendo com que nossas vozes ultrapassassem assim os limites de Valença e ganhassem mundo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Crônicas de 88 VI

Barraca armada

Dentre os muitos fatos, alguns importantes outros nem tanto, ocorridos durante a greve, um, sem nenhuma intenção de roubar a cena, acabou por ganhar espaço e destaque.
Logo no primeiro dia de paralisação um Companheiro, o Canella, correu em casa e buscou uma barraca de camping, que foi devidamente armada numa das extremidades do Jardim da Estação. Ninguém sabia exatamente o motivo da barraca, mas o decorrer da greve revelou suas várias utilidades. Uma mostrava-se durante os dias: Companheiros cansados da correria de uma fábrica a outra, ou que não tinham condições de ir dormir em casa, ou ainda que, por desenvolverem trabalhos de direção daquela greve, precisavam descansar em poucos espaços de tempo que sobravam. E isso tinha que ser feito em revezamento visto que muitos eram os Companheiros que necessitavam revigorar-se com um rápido descanso. Outra das funções da barraca revelava-se à noite e, pelo movimento de entra e sai, essa função parecia bem mais nobre que a de dar descanso aos guerreiros. Sexo! Sexo! Sexo! Era o que rolava naquela barraca pelas longas horas das noites da greve. Não que isso fosse estranho. Afinal, ali estavam homens e mulheres sadios e maduros o bastante para realizarem suas opções sexuais. O que chamava a atenção era a forma um tanto quanto “liberada” com que a coisa se dava (e como dava!).
A barraca e seu conseqüente uso tornaram-se emblemáticos para aquele movimento. O tal entra-e-sai na barraca à noite (ou mesmo durante os dias) revelava um certo rompimento com padrões anteriormente estabelecidos e que ali não mais importavam. Aquilo que antes era pensado com relação a vergonha, pudor, dificuldade em assumir uma tendência sexual diferente, durante a greve ganhou outra conotação. E a forma como isso se dava deixava claro que aquela greve, em vários sentidos, seria realmente um divisor de águas.
A partir dali muitos Companheiros e Companheiras perceberam que aquilo que entendiam por prazer ou felicidade era ditado pela relação estabelecida com a fábrica. Tinha a ver com a dominação sofrida e sentida a partir de tal relação e que a ruptura com esta forma de dominação era essencial para a construção de uma vida mais feliz.
Não que Companheiros e Companheiras abstraíssem a ponto de construir teorias ou conceitos sobre a greve e suas conseqüências na vida dos trabalhadores, mas isso eles enxergavam. Estar fora dos olhares dos chefes e das obrigações da produção os deixavam mais soltos, livres mesmo, para fazerem coisas que até ali não fariam. E faziam com a naturalidade inerente aos livres, sem a preocupação de estarem transgredindo normas, já que as normas vigentes naqueles dias eram as ditadas por eles, trabalhadores em greve.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Crônicas de 88 V

Chamado ao "Paixão"

Durante quase toda a greve o Paixão manteve-se à distância dos trabalhadores grevistas. Mais que isso: manteve-se contrário à greve dizendo-a ilegal, ilegítima, etc. Mas a sua decisão pessoal de não aderir àquele movimento não o fez menor. Tampouco tirou da greve seu legítimo caráter de protesto e reivindicação. Ao contrário, colocou para os trabalhadores têxteis de Valença a necessidade imediata de discutir a renovação urgente da Direção do Sindicato. Mais ainda: ficava patente, a partir da comparação entre a atuação do Sindicato dos Metalúrgicos e da inação da Direção dos sindicalistas têxteis, que a prática Cutista deveria ser implantada na cidade.


A clareza quanto à inoperância do Paixão, ou melhor, quanto a sua aversão a movimentos de massa, deu-se numa das passeatas realizadas pelos trabalhadores em greve pelas ruas da cidade, após um ato público realizado no Jardim de Cima. No ato várias lideranças falaram e chamaram atenção para o que estava ocorrendo com os trabalhadores têxteis da cidade. Também falaram, no mesmo ato, líderes de partidos políticos identificados com a classe trabalhadora e ali hipotecavam apoio àquela categoria em greve. No entanto, uma ausência era verificada: onde estava o Sindicato da Categoria? Nenhum representante do citado se fazia presente. O Presidente continuava na sua intransigência e isso municiava a Categoria, que, publicamente, execrava o Paixão. Poucas pessoas foram tão criticadas em público na nossa cidade quanto o Paixão naquele momento. Trabalhadores em greve, apoiadores vários, trabalhadores de outras categorias, figuras de expressão na cidade, todos miraram e acertaram no Paixão. Tanto que, ao passar em frente ao Sindicato, os Trabalhadores se depararam com um espetáculo terrível: a sede do Sindicato estava cercada por policiais, como se os donos daquela casa - os trabalhadores em greve - fossem, na verdade, bandidos que quisessem depredar a sede ou coisa do gênero.
A proposta de a passeata ter como trajeto a Rua do Sindicato não objetivava confronto com o Paixão. Era sim uma forma de mostrar a ele o quanto os trabalhadores estavam unidos naquele movimento e o quanto estavam dispostos a resistir para alcançar o que reivindicavam. Embora a proposta não visasse o confronto, não foi possível impedir a catarse coletiva. Anos e anos de gritos contidos jorraram como uma cachoeira na cara de Paixão e asseclas que, no momento da passeata, colocavam-se como guardas às portas da sede do Sindicato. E olhavam a Categoria em passeata, de onde vinham palavras de ordem quase como gritos de guerra, impassíveis. Como se aquele movimento todo não os fossem atingir. E a ira de Paixão e caterva aumentava na medida em que viam trabalhadores sempre cabisbaixos e solícitos assumirem aquela forma de luta tão estranha a eles. Era o rompimento público e definitivo com aquela forma arcaica e inócua implantada por Paixão e seus antecessores de conduzir os desejos dos trabalhadores que, por mais de uma vez, demonstraram não ser eficaz. E o rompimento era mútuo: a Categoria não mais queria o Paixão a frente do seu Sindicato e ele percebia que não mais teria espaço diante da Categoria. Seu tempo estava terminado e aquela passeata era a prova clara e incontestável de tal fato.



Mas a participação de Paixão e Cia na greve não termina por aí. O desenrolar da greve e a abertura de canais de negociação com a empresa mostraram para os trabalhadores têxteis que, mesmo eles não querendo, por mais algum tempo Paixão manter-se-ia vivo. É que a lei (defendida pelo Subdelegado Regional do Trabalho que acompanhava as negociações) obrigava a presença do representante oficial dos trabalhadores. Também porque o empresário não aceitava a representatividade da Comissão de Negociação formada por trabalhadores têxteis, metalúrgicos, Direção e advogados do Sindicato dos Metalúrgicos assim como não aceitava a presença, nas reuniões de negociação, do Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, o Companheiro Batista. Assim, mesmo a contragosto, os têxteis que dias antes detonaram a figura do Paixão, teriam que recolocá-lo em seu lugar de Presidente do Sindicato para que as negociações com o empresário pudessem avançar. E lá foram eles em mais um penoso calvário...
Direção dos Metalúrgicos, advogados e outros dirigentes daquele movimento foram unânimes: era preciso buscar o Paixão para a greve. Mas isto teria que ser obra de um processo, segundo o qual Paixão precisaria ver-se importante naquele momento. Todos tínhamos clareza do quanto ele achava-se ofendido com a Categoria assim como sabíamos da repulsa que os trabalhadores sentiam por ele, mas não tinha jeito. Ou o trazíamos para a greve ou ela estaria fadada ao fracasso completo por uma artimanha legal.



Foi criada uma Comissão para falar com o Paixão e, juntamente com o Subdelegado Regional do Trabalho, ela estabeleceu contatos com o Sindicato dos Têxteis. E enquanto desenrolava-se a reunião entre eles, dezenas de trabalhadores aguardavam na rua em frente ao Sindicato o resultado das conversas. Algum tempo depois, os Companheiros que estavam reunidos apareceram com a resposta: traziam o Paixão (que vinha a contragosto, diga-se de passagem) para uma rápida Assembléia na rua. Na tal Assembléia vários Companheiros falaram da importância da participação do Sindicato dos têxteis no movimento e, de certa forma, faziam um "mea culpa" pelo ocorrido na passeata de dias antes. Paixão, por sua vez, usando a palavra, reclamava a não mais poder da forma como fora tratado pelos trabalhadores e, em seu discurso, entre outras coisas, dizia que... "os trabalhadores e líderes daquele movimento o haviam atirado no mais fundo do poço e agora lhe ofereciam uma corda para que ele fosse resgatado...", “... que pela necessidade de sua participação ele assumiria sua responsabilidade, mas que não deixaria de cobrar, mais tarde, de algumas pessoas presentes à passeata, pelo que fizeram...". E enquanto falava, Paixão era obrigado a ouvir Companheiros gritando, entre outras coisas: “... Fala mal do Júlio Vito agora, seu filho da p...". Os Companheiros entendiam que, falando mal do empresário publicamente, Paixão assumia, definitivamente outra postura, talvez até combativa.
E o Paixão veio. A partir daquele momento ele e o assessor jurídico do Sindicato dos Têxteis passaram a participar das reuniões com a empresa, o que, por certo, não representou nenhum avanço nas negociações. Também a participação das tais figuras nos movimentos de massa não representou peso adicional algum. Pelo contrário, vê-los ali nas passeatas, desestimulava a Categoria, visto que sempre foram contrários aqueles atos e jamais trabalharam no sentido de mobilizar e produzir, juntamente com os trabalhadores, movimentos públicos.