domingo, 18 de dezembro de 2011

Crônicas de 88 III

O sonho do Zé Preá

Assim como o Ursinho, outros operários mostravam características marcantes. E esses, por conta de tais características ou não, ganhavam apelidos os mais diversos. Aliás, o mundo das fábricas é fértil para esse tipo de coisa. O trabalhador chegava e pronto, já era logo batizado. Os apelidos variavam enormemente, tanto quanto a forma como quanto ao conteúdo que representavam: Ursinho, Meião, Zé Ruela, Zé Preá, Zé Boceta, Feijão, etc. Alguns apelidos nada tinham a ver com o seu proprietário. Era o caso do Zé Preá.
O preá, como todo mundo sabe (e se não sabe, vai saber agora!) é um animalzinho roedor com calda atrofiada (segundo o Aurélio) parecido com um hamster, só que um pouco maior. É parecido também com o chamado “porquinho da índia”, sendo que as diferenças maiores estão na cor do pêlo e no caráter doméstico do “porquinho”. Entre as características comuns está a rapidez com que se movimentam, nunca parando muito num mesmo lugar por muito tempo. Pois é. Essa é a grande diferença entre o bichinho e o Zé. Um, rápido feito um bólide. Outro, lento, lento, caminhando sem a menor preocupação de chegar a lugar nenhum, lembrando mais um quelônio (um jabuti) do que um roedor.



Na verdade o apelido do Zé deveria estar relacionado a outras características suas, não ao seu andar. Por exemplo, à sua inteligência. Não à toa ele era um dos escolhidos do patrão para mexer nos seus carros, inclusive para auxiliá-lo na construção de máquinas super estranhas, como por exemplo um “jipão” com motor de picadeira que teve os chassis emendados e a cabine totalmente refeita dentro da Santa Rosa Máquinas. Segundo o Zé, o pior não foi trabalhar no estranho veículo, mas testá-lo nas ruas da cidade, visto que o tal carro não desenvolvia velocidade e, no trajeto de teste, estava a delegacia de polícia. O Zé tremeu nas bases ao se tornar motorista daquela “picadeira ambulante”, mas o patrão mandava...
O Zé aderiu desde o primeiro momento à GREVE. Antes mesmo de ela estar instalada freqüentava as Assembléias e discutia as suas resoluções. Não que fosse liderança dos operários, mas era guiado por um tremendo senso de justiça. Conseguia entender como poucos o que estava acontecendo e, sempre que emitia uma opinião, esta vinha carregada de sapiência e tranqüilidade. Mas a grande frase que ouvi do Zé e que se fixou em minha mente não foi nenhuma proposta revolucionária (dependendo do ponto de vista, seria!). Foi dita no primeiro dia da paralisação, quando a tarde já ia alta e, de fato, estávamos em GREVE. Num dos bancos da Praça da Estação sentávamos eu, o Zé, o Kardec, o Gilcimar e outros companheiros. A conversa, como não podia deixar de ser, girava em torno da nossa GREVE. Num determinado ponto do papo o Zé falou: “Hoje eu estou realizando um sonho antigo...” Olhamos para o Zé, aguardando a revelação: “É que, desde quando vim trabalhar nesta fábrica, tinha vontade de passar um dia inteiro sentado aqui, olhando o movimento. A GREVE tá realizando esse sonho”.
É. Além do caráter reivindicatório a GREVE trazia outros sentidos. Ela foi, por exemplo, a responsável por conhecermos melhor as pessoas com quem lidávamos diariamente. Também foi a responsável pela realização de vários sonhos, inclusive o do Zé.
Ao expor o seu sonho, Zé falava do imaginário de praticamente todos os operários daquela fábrica. Ele personificava um sonho coletivo de se rebelar contra a obrigatoriedade das oito horas de trabalho, contra as ordens da chefia, contra o mau humor dos encarregados, contra o barulho ensurdecedor da tecelagem. Enfim, o sonho do Zé revelava o nosso sonho coletivo: de, pelo menos durante a GREVE, levar uma vida igual a de nossos chefes e empregadores: ficar na praça, sem nenhuma preocupação com a produção, apenas vendo a vida passar.

2 comentários:

  1. Rapaz, isso mereceria uma dissertação de antropologia social.

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  2. Quem sabe um dia? Por enquanto é só um texto sem nenhuma preocupação acadêmica. Diverte-me lembrar das situações vivenciadas naquele período mesmo sabendo da seriedade do momento. Penso que a Monografia no Curso de História cumpriu um papel com relação à greve em tela, mas vários pontos podem ser, sim, objetos de pesquisa mais aprofundada.

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